Viva Robin dos Bosques
Ricardo Arroja, num artigo de opinião assinado no Público, fez uso da crítica de Ayn Rand a Robin dos Bosques para justificar a sua própria condenação a impostos “extraordinários”. Mas, mais do que isso, o artigo é a verdadeira demonstração da inversão de valores que afectou os meios intelectuais ditos liberais. Outrora, lutavam contra as garras da tirania e do poder indiscriminado, isto é, poderiam não concordar com os métodos de Robin dos Bosques, mas apreciavam a lógica distributiva. Hoje, aparentam lutar pela manutenção do seu poder e jugo quase tirânico.
A mensagem que passa é extremamente simples: imposto é praticamente o mesmo que roubo. Faz uso da argumentação típica de que o Estado, tendo o monopólio da tributação, encontra-se numa slippery slope em que rapidamente pode cair na tirania e usurpação: “roubar aos ricos para dar aos pobres não representa nem finalidade orçamental nem comportamental; representa somente uma reacção face à injustiça que resulta da tirania. Não deve, portanto, ser exercida através da fiscalidade”. Portanto, para Ricardo Arroja, qualquer imposto adicional encontra-se mais próximo da definição de roubo, independentemente da sua origem, valor, âmbito, aplicação ou afectação de recursos, o que me parece suis generis, no mínimo, principalmente quando falamos dos lucros de grandes grupos económicos.
O imposto extraordinário sobre lucros (ou windfall tax) não é uma novidade ou invenção italiana – já foi aplicado em inúmeros países europeus, por exemplo, no caso das empresas do sector energético. É, inclusive, uma excelente forma de combater a parte da inflação que advém dos lucros das empresas e do seu mark-up (segundo o FMI, instituição tudo menos socialista, essa inflação representa cerca de 50% da inflação europeia). Se pensarmos no contexto da banca, que recebeu ajuda por toda a Europa na época da crise das dívidas soberanas, este imposto extraordinário é o mínimo que se pode exigir numa altura em que os grandes grupos acumulam lucros em detrimento dos menos favorecidos, que vêem a sua prestação ao banco a aumentar.
Ainda assim, esta argumentação era mais do que expectável para quem lê regularmente Ricardo Arroja. Um aspecto bem mais curioso é a indignação apenas ter surgido agora, quando o governo italiano decidiu taxar um sector muito beneficiado pelo seu poder de mercado e pela subida das taxas de juro. Quando o governo de extrema-direita de Meloni retirou apoios às famílias mais desfavorecidas, não houve este espernear. Quando o governo proto-fascista de Meloni retirou direitos de adopção de casais homossexuais, não houve nenhuma celeuma. Quando o governo ultra-conservador de Meloni diminuiu os direitos das mulheres, não houve sequer um pequeno comentário. Somente vimos a irritação e a defesa intransigente de direitos quando o ataque visou os lucros e o regime de propriedade dos grandes grupos económicos. Esta inversão de valores faria corar qualquer verdadeiro liberal.
Por ser bastante infeliz, também faz corar a tirada: “em matéria de política fiscal, de ir buscar dinheiro a quem o tem, a extrema-direita continua próxima do socialismo”. No caso concreto, a expressão “um relógio avariado acerta duas vezes por dia” nunca fez tanto sentido. Que ninguém tenha dúvidas: o governo de Meloni é extremamente condenável e não é por ter avançado uma boa medida que o aproxima de qualquer outra forma de poder que não a proto-fascista. Em suma, um relógio avariado, mesmo acertando duas vezes por dia, é um mau relógio. Consta, inclusive, que Robin dos Bosques nunca utilizou relógio.
Para alegria de Ricardo Arroja, o governo italiano sucumbiu à pressão dos mercados financeiros. Um dia após anunciar a medida, a cotação dos principais bancos italianos caiu e, para impedir uma perda de valor ainda maior, o governo decidiu colocar um tampão na proposta, tornando-a verdadeiramente risível. Que ninguém se iluda: isto é o poder político e social a ser subjugado pelo poder económico, um ultraje à democracia e ao poder social. Porque nunca cansa dizer, o sistema económico deve servir a sociedade e não o seu contrário.
Ricardo Arroja conclui que “a lenda do Robin dos Bosques é moralmente aceitável porque consiste na reacção popular ao poder exercido de forma arbitrária”, o que me parece uma clara contradição face a todo o seu artigo. Concordo com a afirmação, mas é preciso olhar de forma holística para “o poder exercido de forma arbitrária”. Ignorar que o mercado “livre” subjuga cidadãos e seus representantes, cria e aumenta a desigualdade e impede a prosperidade da maioria é ter uma duplicidade de critérios: quando o poder é exercido por um governo eleito, ele é arbitrário; quando é exercido pelas forças de mercado (pelos poder dos mais ricos), ele é justo e nada devemos fazer. A afirmação é, por isso, contraditória ao resto do artigo.
Robin dos Bosques mostra-nos o que fazer quanto ao exercício indiscriminado de poder, independentemente da sua origem – combatê-lo. Podemos discordar dos seus métodos de actuação e exigir mecanismos de mudança dentro do Estado de direito – opção que, de longe, prefiro. Ainda assim, a sua figura é uma inspiração para uma sociedade e um contrato social mais justo. Viva Robin dos Bosques!
O autor não segue o novo acordo ortográfico