E agora? – Parte I


No passado 23 de julho, realizaram-se em Espanha as eleições gerais mais disputadas da história democrática. Importa, por isso, levar a cabo uma análise construtiva, dentro do cenário político espanhol, sem ceder à tentação de dissecar os resultados de 23 de julho com um olhar externo e opaco que ignora, por facilitismo ou desconhecimento, as idiossincrasias de uma realidade política, económica e social de grande singularidade. Contudo, é de suma importância compreender os contornos e os antecedentes deste ato eleitoral, para que o leitor, já informado, possa olhar para o argumento desde uma perspetiva mais crítica e poder, se assim o desejar, tecer a sua própria análise dos factos.

Depois de um resultado, no mínimo, desolador para a esquerda espanhola nas municipais de maio, o Presidente do Governo, Pedro Sanchéz decidiu antecipar as eleições gerais, programadas para dezembro de este ano, para o mês de julho. Olhando para os resultados de maio, vemos que o espaço político do Partido Socialista Obrero Español (PSOE) perdeu 400.000 votos, o que se traduz na perda de praticamente dois pontos percentuais. De facto, os socialistas ainda conseguem aumentar a sua representação política em Comunidades Autónomas como Valência, onde aumentam em 4% o número de votos e a sua representação em 4 deputados. Contudo, a marca valenciana do PSOE não consegue aguentar o governo regional porque, se a queda do espaço social-democrata se fez sentir, o estrondo da esquerda mais radical foi um tsunami. As formações políticas à esquerda dos socialistas, nomeadamente o Podemos e as suas confluências territoriais, perderam votos e representação em comunidades chave, como Madrid e Valência, e viram a sua influência fortemente reduzida em regiões como as Astúrias, Aragão e Baleares. Ainda assim, candidaturas como Convocatória por Astúrias (CxA) entre a Esquerda Unida, o Mais País e a Esquerda Asturianas foram capazes de resistir e, em alguns casos, melhorar resultados. Para manter o exemplo das Astúrias, aí governará uma coligação formada pelo PSOE e CxA, com o apoio do Podemos.

Com as eleições antecipadas, as repercussões das municipais e em pleno processo de constituição de um projeto agregador nesse espaço político (o Sumar de Yolanda Díaz), adivinhava-se uma campanha complicada e sofrida para a Esquerda espanhola. Não me deterei a escrutinar o processo de formação do Sumar, já que para isso seria necessária uma reflexão mais longa. Vamos à campanha.

Da esquerda para a direita, Santiago Abascal, Yolanda Díaz e Pedro Sánchez

O debate final nas eleições espanholas, ao qual Feijóo, do PP, não compareceu. Da esquerda para a direita: Santiago Abascal, do VOX, Yolanda Díaz, do Sumar, e Pedro Sánchez, do PSOE

Fonte: VOX España, CC0, via Wikimedia Commons

A campanha

O período de campanha eleitoral foi intenso: com uma direita radicalizada e a morte dos liberais espanhóis do Ciudadanos, as opções reduziram-se a duas possibilidades de governo, uma do Partido Popular (PP) com a extrema-direita do VOX ou a continuidade da atual coligação de governo progressista entre o PSOE e, agora, o Sumar. Numa campanha na qual temas cruciais para os espanhóis – como a habitação, a crise climática, os crimes ambientais no Mar Menor e em Doñana, o modelo territorial ou a saúde – foram completamente eclipsados pela narrativa da direita radical e dos pós-franquistas, restou apenas a barbárie.

No discurso reacionário do bloco conservador, a ETA tinha voltado, Espanha estava a caminho do desastre, o comunismo e o separatismo catalão e basco romperiam a tão amada pátria. O discurso era de tal ordem distópico e inverossímil que lemas como “Que te vote Txapote” (em alusão a um terrorista basco da ETA) vieram para ficar em camisolas e carrinhas. Enfim, reinou a falta de respeito para com os que tinham já sofrido no passado. Com a ressuscitação da ETA pela direita, ávida de poder, o relato reacionário centrou-se no facto de a coligação de governo em funções ter negociado o apoio de partidos independentistas e nacionalistas periféricos tentando consolidar a falta de legitimidade da solução política encontrada. Contudo, na história democrática, a direita (pelas mãos do PP) nunca acordou nada com formações soberanistas?

Hemeroteca

Fazendo uma pequena viagem pelas linhas do tempo, podemos constatar que, em 1996, Aznar assina o famoso Pacto Majestic com Jordi Pujol, então Presidente do partido Convergencia i Uniò (CiU) e que anos mais tarde viria a ser o pai do atual Junts Per Catalunya (JuntsXCat). Ainda recentemente, para as eleições municipais de maio, os independentistas do Junts apresentaram um candidato “pujlista”, ou seja, que aposta pelo diálogo entre as instituições espanholas e catalãs para, assim, poder ter mais competências e autogoverno. É de sublinhar, ainda, que o candidato em questão, Xavier Trias, estava disposto a fazer uma grande coligação com a sucursal catalã do PSOE, o Partido Socialista Catalão (PSC) e o partido independentista de centro-esquerda Esquerda Republicana de Catalunya (ERC). Portanto, a nostalgia de 96 ainda vive em algumas franjas do independentismo catalão mais conservador, no que toca em apostar pelo diálogo.

Quero ainda mencionar alguns pontos que considero fundamentais para que o leitor, cujo contacto mais recente com a realidade política espanhola foi uma tertúlia conservadora nas televisões nacionais, tenha oportunidade de conhecer, ainda de que forma sintética, alguns matizes importantes.

O independentismo catalão, tal como o conhecemos, foi ressuscitado pelo Partido Popular em 2006, quando fez cair o novo Estatuto Autonómico catalão na justiça. Isto aconteceu num momento em que o PSC, a ERC e a Esquerda Unida detinham o governo regional, ao mesmo tempo que apoiavam em Madrid o governo de Zapatero. Anos mais tarde, já com esta ferida, com a crise do ano de 2008 e o governo neoliberal de Mariano Rajoy do PP (2011), o nacionalismo catalão soberanista volta a ganhar força com lemas como “España nos roba” e a multitude de forças e organizações separatistas promoviam a saída de Espanha como uma forma de resolver ou, pelo menos, mitigar os efeitos da crise. De facto, até ao culminar do referendo de 2017, as forças independentistas maioritárias, ou seja, Junts, ERC e os anticapitalistas da CUP promoveram uma campanha insolidária, que assentava no facto de o dinheiro dos catalães ser destinado para comunidades autónomas com mais necessidade de financiamento como são os casos de Múrcia, Andaluzia e Extremadura e com ataques xenófobos a pessoas oriundas do sul espanhol. Onde é que já ouvimos isto?

Como pessoa de esquerda que sou, sempre fui crítico dos acordos feitos entre a esquerda nacional e os nacionalismos periféricos, especialmente os de esquerda, que, perante a eterna questão, nação ou classe, optam sempre pela primeira, pondo em causa os avanços conseguidos, como foi o caso da Reforma Laboral.

Chegados até aqui, e tendo já mostrado que, afinal, a direita também chega a acordos com nacionalistas e que a base do atual independentismo catalão assenta, fundamentalmente, em questões económicas, estamos já em condições de prosseguir para o último bloco deste argumento, que virá na segunda parte desta análise, a ser publicada em breve.

[Nota do autor, 30 de agosto de 2023: a segunda parte deste texto já se encontra disponível aqui]


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