Finanças com o Morto
No filme de 1989 “Weekend at Bernie’s” (em Portugal, “Fim-de-semana com o morto”), dois amigos descobrem que o seu chefe faleceu no preciso fim-de-semana em que iria organizar uma festa. Após um breve momento de pânico, os dois amigos decidem prosseguir com a festa, fingindo que o chefe estava vivo, como se de nada se tratasse. Passeiam com o morto, fazem de conta que ele interage com as restantes pessoas – em suma, toda uma panóplia de peripécias que tornam o enredo engraçado. Para filme de comédia serve. Quando o morto é o nosso ministro das finanças, rapidamente o enredo passa de comédia a tragédia. Pior: em vez de um fim-de-semana, teremos de fingir que o morto está vivo durante (previsivelmente) 4 anos e meio.
Fernando Medina está morto. Claro, não me refiro à sua morte física, antes à sua morte política. Até há relativamente pouco tempo, Medina era o delfim número um de António Costa e a principal referência para a sua sucessão na liderança do PS – em 2020, o único rival que se lhe afigurava era Pedro Nuno Santos, que ainda se mantém como possível sucessor. Entretanto, mais candidatos, como Ana Catarina Mendes ou Mariana Vieira da Silva, surgiram. Já o nome de Fernando Medina, pelas trapalhadas e perdas eleitorais, saiu da short list para a sucessão de Costa. Aliás, Medina não só perdeu o comboio, como foi atropelado pelo mesmo: encontra-se neste momento encostado a uma segunda linha de putativos sucessores ao secretário-geral do PS e só se pode culpar a si próprio por tal acontecimento, pois partia na melhor posição possível.
Medina esteve envolvido em algumas polémicas, a grande maioria ocorrida no último ano, devido sobretudo a um maior escrutínio aquando das eleições autárquicas. A mais grave foi o envio de dados de manifestantes anti-Putin, enquanto presidente da maior câmara do país, para a embaixada russa e para o MNE da Rússia. Numa era da nossa sociedade onde os dados (e, em concreto, os pessoais) possuem um papel cada vez mais preponderante, Medina, como responsável máximo pela câmara municipal deveria, como qualquer pessoa de bom senso, ter dado a cara e demitir-se do cargo no momento ou, numa opção mais sensata, não se recandidatar às eleições que se aproximavam. A partilha destes dados, cerca de meio ano antes da invasão da Rússia à Ucrânia, é só uma agravante de toda a situação. Podem dizer que o comentário a posteriori é fácil, mas a Rússia de Putin não se tornou uma autocracia nos últimos 6 meses – já é um regime autoritário há décadas. Só este caso seria suficiente para que a morte de Medina se confirmasse mas, infelizmente, o óbito não se concretizou aqui.
Em consonância com as trapalhadas, como a supra-referida, o seu olhar e atitude sobranceiros e, sobretudo, a sua falta de carisma culminaram na derrota nas autárquicas de Setembro passado, para a coligação “Novos Tempos”. A Câmara de Lisboa escapou das mãos do PS (cujo domínio socialista começou em 2007) por um só culpado: Fernando Medina. Pode-se argumentar que a vida é feita de ciclos e a política não escapa a essa lei fundamental. No entanto, os resultados das eleições não mostraram uma vitória estonteante de Carlos Moedas, mas sim uma derrota desastrosa de Medina, que perdeu cerca de 25 mil votos. Ainda assim, se aceitarmos como certa a lei dos ciclos da vida, estamos em condições de afirmar que o perecimento de Medina teve confirmação nessa noite eleitoral.
Outra lei fundamental muito veícula é que em política, a memória é curta. As diversas trapalhadas, gafes e derrotas vão sendo diluídas no tempo, até se tornarem uma memória muito ténue nas nossas mentes. Tal encadeamento lógico é verdadeiro, caso não aconteçam mais trapalhadas. Se Medina fizer um percurso imaculado nas finanças, talvez todos os acontecimentos supra-referidos caiam no esquecimento. No entanto, o seu historial não abona nesse sentido.
Num cenário de inflação a disparar por toda a zona euro, políticas europeias menos expansionistas, guerras e crise de refugiados e falhas graves nas cadeias de abastecimento, António Costa trouxe um ministro mais político que técnico, e, como o meu colega de blogue José Alves Amaro disse “O Ministério das Finanças tradicionalmente requer um profundo conhecimento da área e capacidades técnicas que Medina nunca demonstrou ter.". Pior do que trazer um político para uma pasta tradicionalmente mais técnica é dar o cargo a um político morto. Que credibilidade terá Fernando Medina junto dos restantes membros do governo e, sobretudo, diante da Assembleia da República e dos restantes portugueses? Costa repescou Fernando Medina, talvez por misericórdia, talvez por nostalgia, talvez por amizade ou talvez por não querer pagar o seu funeral.
John Maynard Keynes, provavelmente o maior economista do séc. XX, na sua Teoria Geral escreveu “Practical men, who believe themselves to be quite exempt from any intellectual influences, are usually the slaves of some defunct economist”, que se pode traduzir para “Homens que acreditam estarem isentos de qualquer influência intelectual são, normalmente, escravos de um economista morto”. Quando digo que António Costa devia reler Keynes, não me referia a transpor literalmente tudo para a realidade, como obrigar-nos a ter como ministro das finanças um economista defunto.
O autor não segue o novo acordo ortográfico