Efeitos de uma maioria absoluta


Na passada quarta-feira, dia 23 de março, soubemos quais serão os ministros do próximo governo. O anúncio não ficou livre de controvérsia: os nomes dos ministros saíram na comunicação social antes de António Costa os comunicar ao Presidente da República, como seria normal. Trata-se de uma situação que, aos mais incautos, pode parecer um mero detalhe, mas merece, no mínimo, uma breve análise.

De acordo com a Constituição, os membros do governo “são nomeados pelo Presidente da República, sob proposta do Primeiro-Ministro”. Na prática, pressupomos que uma eventual intromissão considerável do Presidente da República na escolha dos ministros seria um abuso de poder. Contudo, a aceitação da lista de ministros pelo Presidente, sem a pressão da opinião pública, é de capital importância e encarar essa aceitação como um mero pró-forma é mostrar desprezo pela figura do Chefe de Estado, constitucionalmente responsável pela nomeação. Como agravante, as situações de desrespeito pelas tradições institucionais entre o governo e o Palácio de Belém parecem repetir-se com António Costa à cabeça: foi o Primeiro-Ministro o primeiro a insinuar uma recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa às presidenciais de 2021 e a nomeação de Gouveia e Melo para Chefe do Estado-Maior da Armada (antecedida da exoneração de Mendes Calado) já tinha infringido os tradicionais procedimentos do ato, num momento que analisei neste blogue e que, sabemos agora, poderá ter estado na origem da transição de Gomes Cravinho da Defesa para os Negócios Estrangeiros.

Finda a apreciação da forma do anúncio, importa agora olhar ao seu conteúdo: a organização do XXIII Governo Constitucional e os nomes dos seus ministros. Há que destacar o tamanho do novo governo. Passa de 19 para 17 ministros e de 50 para 38 secretários de Estado, o que constitui um passo no sentido certo, de um governo mais pequeno, capaz de maior coordenação e ação mais rápida. Este efeito deve ser amplificado pelo facto de estar planeada uma concentração dos ministérios num só edifício, a sede da Caixa Geral de Depósitos. Deve-se também elogiar a paridade nos nomes anunciados – 9 mulheres e 9 homens (incluindo António Costa). Esperemos que, em pleno século XXI, se torne a norma.

Os elogios continuam, passando também pelo nome de Elvira Fortunato, que será ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. A investigadora é, atualmente, um dos nomes maiores da ciência em Portugal e, certamente, conhece melhor do que todos a triste realidade da investigação científica no nosso país. Além disso, enquanto vice-reitora da Universidade NOVA de Lisboa, teve também contacto com as dificuldades inerentes à gestão de instituições de ensino superior.

Deixo o desejo que faça um trabalho melhor do que Manuel Heitor, que está de saída. Não deverá ser difícil, dado que o futuro ex-ministro deixou a fasquia muito baixa. Um exemplo de má gestão foi a imposição populista da abertura de novas faculdades de Medicina – públicas, em universidades que nunca tinham manifestado intenção para tal, e privadas, com programas de qualidade questionável –, que em nada contribuem para solucionar os verdadeiros problemas de alocação de médicos em Portugal e, no limite, poderão servir apenas para os agravar, num país que já tem um dos maiores números de médicos per capita do mundo, sem que isso tenha resolvido os problemas sistémicos do SNS.

Fotografia de Elvira Fortunato

Elvira Fortunato será a nova ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior

Fonte: Ministère de l'Europe et des Affaires étrangères, CC BY 3.0, via Wikimedia Commons

Infelizmente, é mesmo na nomeação de Elvira Fortunato que fica o último elogio. De resto, sobram soluções de continuidade (que não indiciam ideias renovadas que contribuam para reformas estruturais que a entrada de fundos europeus podia, com outro governo, promover), nomes da maquinaria partidária (já que António Costa se foca cada vez mais em fornecer toda e qualquer alternativa que não Pedro Nuno Santos para a sua sucessão) e, nos piores dos casos, claros retrocessos na competência e/ou credibilidade dos ministros. Passo a alguns dos nomes que gostava de destacar.

O primeiro é, provavelmente, o mais sonante: Fernando Medina, próximo ministro das Finanças. Tantas vezes apelidado como o delfim de Costa, Medina recebe agora o seu prémio de consolação depois da inesperada derrota na corrida à Câmara Municipal de Lisboa. O problema é que, em política, não deveria haver prémios de consolação. Muito menos deveria esse prémio ser o Ministério das Finanças, que tradicionalmente requer um profundo conhecimento da área e capacidades técnicas que Medina nunca demonstrou ter, em especial numa altura em que se prevêem tempos difíceis na frente financeira. Pensava-se que António Costa compreendia as exigências da pasta, depois das escolhas de Mário Centeno e João Leão, extremamente reputados nas suas áreas. Afinal, descobrimos que o Primeiro-Ministro não tem pudor em dar um dos ministérios tipicamente mais proeminentes como peça de caridade a um companheiro caído.

Fernando Medina e António Costa juntos numa edição da Web Summit

Fernando Medina, próximo ministro das Finanças, com o Primeiro-Ministro António Costa

Fonte: Web Summit, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons

De seguida, menciono Pedro Adão e Silva – será ministro da Cultura. A verdade é que não tenho razões particulares para duvidar das capacidades do futuro ministro. No entanto, também não tenho grandes razões para acreditar nessas capacidades e deve ser esse o crivo pelo qual julgamos as escolhas de governantes. Ademais, depois da sua polémica nomeação para comissário executivo das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, este é um nome que chega ao governo já muito desgastado na opinião pública. Nem sequer se pode considerar que esta nomeação seja uma recompensa pelo trabalho feito para as comemorações, dado que estas só começaram no passado dia 23 e terminarão apenas em 2024.

Finalmente, é importante falarmos da escolha de António Costa e Silva, o novo ministro da Economia e do Mar. Infelizmente, não partilho do otimismo do meu colega de escrita, Hélder Fontes, em relação a esta nomeação. Numa altura em que havia uma equipa ministerial perfeitamente capaz de assumir essa tarefa (incluindo um ministro do Planeamento), o Primeiro-Ministro preferiu chamar o presidente executivo de uma petrolífera, a Partex Oil and Gas, Costa e Silva para elaborar o Plano de Recuperação e Resiliência. Em pleno 2022, é este CEO de uma empresa da petroquímica, que há menos de quatro anos assinava um texto em que defendia maior prospeção de petróleo em Portugal, que se torna ministro da Economia. Perante a emergência climática, num dos poucos países que têm mostrado potencial para uma rápida transição completa para energias renováveis, a mensagem passada aos portugueses não podia ser pior.

Pelo menos, para minimizar o conflito de interesses, o Ministério da Economia e do Mar continua a não ter a pasta da Energia, ainda sob a alçada do ministro do Ambiente e Ação Climática. Porém, por outro lado, essa decisão também faz questionar mais a nomeação de um empresário cuja principal especialidade é a política energética. Fica a pairar a dúvida: não haveria ninguém melhor para tomar o leme de um ministério com estas características? Sou da opinião que sim. Nomeadamente, Pedro Siza Vieira, o ainda ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, que conseguiu a proeza de pertencer a um governo socialista e manter uma boa relação com empresários e investidores. Costa passa um sinal de prioridades trocadas e critérios enviesados: substituiu-se um dos poucos pontos positivos da anterior equipa ministerial, enquanto se mantiveram nomes divisivos, como Gomes Cravinho ou Marta Temido.

O PS de António Costa conquistou uma maioria absoluta e o Primeiro-Ministro acaba de nos mostrar o que planeia fazer com ela. Em geral, ficamos com um governo diferente na sua constituição, mas igual no programa. Mais politizado, a olhar mais para a estratégia partidária do que para o futuro do país, e “mais do mesmo”, no que diz respeito à direção das políticas: sem visão a longo prazo, sem dinamismo.


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