Vice-almirante Gouveia e Melo ou: Como Aprendi a Não me Preocupar e Adorar a Armada


Sou o primeiro a admitir que, à data da nomeação do vice-almirante Gouveia e Melo para coordenador da Task Force para a vacinação contra a COVID-19, não estava particularmente confiante na escolha feita. O anterior coordenador, Francisco Ramos, tinha sido um claro erro de casting. No entanto, não sou alguém que reconhece a uma dada figura mais ou menos competência, disciplina ou capacidade de responder a uma emergência, só por esta integrar as Forças Armadas. Faltava-me, à data, saber mais acerca do vice-almirante em particular, saber que o já então Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado-Maior-General das Forças Armadas seria perfeitamente capaz de transpor a sua experiência em matéria de logística para o desafio que o encarava e que não se deixaria levar pela visibilidade pública do cargo. Os meses que se seguiram trataram de me esclarecer.

Continuo, ainda assim, firme numa outra convicção: se o excelente trabalho do vice-almirante é digno de todos os elogios que este tem recebido, a sua competência e o seu profissionalismo não devem ser a exceção, mas sim a norma no desempenho de um cargo público e não devem dar azo a que Gouveia e Melo seja idolatrado e veja o seu nome ser associado a todos os outros cargos, independentemente de quem já os ocupe. Foi o que aconteceu no decorrer da semana passada, relativamente ao cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada.

O que observamos nos últimos dias é que o Ministério da Defesa de Gomes Cravinho permitiu que o processo de substituição do atual Chefe do Estado-Maior da Armada, Mendes Calado (que foi reconduzido ainda em Fevereiro deste ano), chegasse à praça pública. Pelo caminho, pareceu assumir apenas como formalidade o facto de que, conforme a Constituição, é o Presidente da República – comandante supremo das Forças Armadas – quem teria de exonerar o atual detentor do cargo, antes do tempo, e nomear o seu sucessor. O Presidente parece não ter sido consultado em qualquer momento do processo, vindo negar que vá proceder a qualquer exoneração.

João Gomes Cravinho, António Mendes Calado e Henrique Gouveia e Melo

Da esquerda para a direita: o Ministro da Defesa, João Gomes Cravinho; o Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante António Mendes Calado; o coordenador da Task Force para a vacinação contra a COVID-19, vice-almirante Henrique Gouveia e Melo

Fontes: Washington Costa/MDIC, CC BY-SA 2.0; Marinha dos EUA, Domínio Público; Colégio de Guerra Naval dos EUA, CC BY 2.0; via Wikimedia Commons

As motivações que, correta ou incorretamente, poderemos assumir estarem por trás da decisão do Ministro não trazem uma perspetiva favorável ao caso. Mendes Calado contestou a reforma da Organização das Forças Armadas que o Ministério da Defesa promoveu este ano, particularmente pela acumulação no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas de poderes que, anteriormente, pertenciam aos chefes de cada ramo das Forças Armadas. Não foi o único: esta foi contestada, por exemplo, pelos restantes Chefes do Estado-Maior de cada ramo e por antigos chefes militares – o mais notório dos quais, Ramalho Eanes. Adivinha-se que a repressão das críticas dentro da estrutura de topo das Forças Armadas possa, assim, estar na base desta decisão que, por este prisma, começa a mostrar traços demasiadamente autoritários.

A outra justificação que pode explicar as ações do ministério é a de querer capitalizar com a reputação de Gouveia e Melo, querendo aproveitar a estima do público pelo vice-almirante para conseguir votos em eleições futuras. Duvido que o próprio, com a discrição a que nos habituou, estivesse a par deste processo ou quisesse dele fazer parte, sendo mais um peão nas ações do Governo.

Estes fatores não indiciam uma postura saudável de um governante em democracia. Apela-se agora à Assembleia da República, a quem compete constitucionalmente a fiscalização dos atos do Governo, que proceda ao escrutínio do caso e contribua para o devido apuramento de responsabilidades.

Se houver ainda quem tenha dúvidas: sim, o título que dei a este artigo é uma referência à brilhante comédia de Stanley Kubrick, “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”. E não vem sem propósito: no filme, um general prepotente ignora a devida cadeia de comando e deixa o mundo à beira de uma guerra nuclear; nesta adaptação à realidade, um ministro da Defesa prepotente ignora a Constituição da República Portuguesa e deteriora a relação entre poderes, assim como a imagem do Governo. É certo que as ações de Gomes Cravinho parecem levar a consequências menos graves. Não devem, ainda assim, deixar de ser censuradas.

A Sala de Guerra de "Dr. Strangelove"

A Sala de Guerra, no filme “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb”

Fonte: Realizado por Stanley Kubrick, Distribuído por Columbia Pictures, Domínio Público, via Wikimedia Commons


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