Queres a minha vida? Não trabalhes, malandro!


Situado junto à Nacional 1 (N1), em Pombal, O Manjar do Marquês é paragem obrigatória para quem faz a viagem Porto-Lisboa (ou o contrário) por esta estrada, não só por se encontrar aproximadamente a meio do caminho, mas também pela simplicidade e qualidade dos três pratos que acompanham o famoso arroz de tomate. A construção da auto-estrada, que reduziu consideravelmente o tempo de deslocação e fez migrar o tráfego da N1, esbateu a paragem obrigatória que se fazia, mas o restaurante continua, ainda assim, com bastante tráfego. Talvez por isso, almoçar ao balcão leva-nos numa viagem no tempo até aos anos 80, onde, entre vários adornos decorativos, serviço tradicional e estilo taberneiro, existem inúmeros azulejos com expressões típicas portuguesas. Um deles captou a minha atenção: diz “Queres a minha vida? Trabalha, malandro!”. Fiquei a pensar na frase durante a refeição. Cheguei à conclusão de que não faz juz à realidade.

Segundo a OCDE, Portugal é um dos países que mais favorece o capital e os seus rendimentos em detrimento dos do trabalho. No relatório, pode ler-se que Portugal é o terceiro país da OCDE onde essa diferença é maior. Isto significa que alguém que vive somente dos rendimentos do seu trabalho suporta mais o Estado social do que alguém que vive de rendimentos de capital, algo manifestamente injusto – creio ser relativamente óbvio que, para obter rendimentos a partir de capital, primeiro teve de se passar por uma fase de acumulação ou herança, o que, num país cuja taxa média de poupança é metade da europeia, é uma situação reservada a uma elite estanque (a herança ganha).

Ainda assim, tais situações não se restringem apenas a Portugal. É, aliás, impressionante como os regimes fiscais um pouco por todo o globo favorecem os rendimentos de capital em detrimento de quem passa uma vida inteira a trabalhar. Apesar de assim ser por inúmeras razões, algumas delas válidas, como o facto do capital ser bem mais móvel do que a força de trabalho e a globalização afectar os investimentos, é inconcebível permitirmos um diferencial tão grande entre os dois tipos de rendimento.

Robin dos Bosques

O microcosmos de Londres - mercado de compra e venda burguês.

Fonte: William Henry Pine, via WikimediaCommons

Em Portugal, e, em boa verdade, na maioria dos países da Europa, os rendimentos de capital são taxados a uma percentagem fixa. Por cá, a taxa liberatória é de 28%, existindo a opção de englobamento opcional em sede de IRS, o que torna a sua taxação progressiva para quem optar por tal regime. Esta opção permite que pequenos aforradores possam beneficiar de uma taxação inferior justamente porque os seus rendimentos totais são baixos. Contudo, o facto de ser opcional constitui um benefício fiscal para rendimentos de capital elevados – para o mesmo montante, um rendimento do trabalho pode ser taxado a uma taxa francamente superior a um rendimento do capital. Exigem-se mudanças neste sentido. A taxa liberatória deveria ser de obrigatória inclusão em sede de IRS ou alvo de escalões para diferentes montantes (opção que prefiro). Desta forma, a sua taxação tornar-se-ia mais progressiva, mais amigável para pequenos e médios investidores, socialmente e fiscalmente mais justa e permitiria manter a distinção entre tipos e origem de rendimentos.

Ainda assim, isto não seria minimamente suficiente. Devido à mobilidade e volatilidade do capital, exige-se uma maior coordenação europeia para os regimes de taxação de capital, por exemplo, sob a forma de balizas mínimas, por forma a tornar a competição entre países mais saudável – e inclusive fomentar a cooperação.

É certo que a financeirização e a complexidade do sistema económico e monetário torna cada vez mais difícil distinguir certos tipos de rendimentos, com os rendimentos mistos à cabeça, mas tal não esvazia a discussão. Falamos de pessoas que se situam em estratos completamente díspares da sociedade – quem obtém rendimentos de capital num valor significativo está numa posição bastante mais privilegiada do que quem vive somente do seu trabalho e, por conseguinte, estes últimos deveriam ser bem menos taxados.

Podem já não existir tantos rentistas “puros” como na Belle Époque, mas o grau de acumulação de capital continua num nível igualmente atroz. Talvez por isso, e graças à capacidade de elisão e engenharia fiscal que os grandes patrimónios permitem, faz mais sentido a frase n’O Manjar do Marquês ser algo como: “Queres a minha vida? Não trabalhes - herda!”. Irei deixar esta sugestão da próxima vez que passar por lá.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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