Don't cry for me Argentina


Apesar da vontade imensa de chorar, devemos tentar conter as lágrimas pelos argentinos, como nos pediu Eva Perón em "Don't cry for me Argentina". No passado domingo, Javier Milei, candidato da extrema-direita, ganhou as eleições presidenciais contra o peronista Sergio Massa, que representava o statu quo. Num período manifestamente marcado por inflação abrupta, desigualdade gritante, más condições laborais, insegurança e instabilidade – decorrente, sem dúvida, de décadas de más políticas dos peronistas –, os argentinos apostaram num lunático, ao invés de um moderado que, apesar de todas as promessas de mudança no sistema, não inspirava a confiança do povo num projecto reformista. Daqui podemos tirar a primeira lição das eleições argentinas: a ausência de respostas aos problemas da população leva a que esta se volte para soluções extremistas, por oposição à manutenção da ordem social que declaradamente não a satisfaz.

As más políticas dos peronistas não vieram sozinhas. A Argentina encontra-se num processo incessável de intervenções do FMI: conta com mais de vinte desde 1956, numa média de uma intervenção a cada três anos. Sabemos por experiência própria a perniciosidade de cada intervenção do FMI, com o inegável aumento da pobreza, da precariedade, da desigualdade, o retirar de capacidades produtivas essenciais ao país e a liberalização em massa do já parco tecido Estatal. Em suma, os resultados da típica austeridade das intervenções neoliberais. Polanyi, economista sociólogo do início do século XX, ensinou-nos a segunda lição destas eleições: a vitória do fascismo torna-se inevitável quando a oposição dos liberais impede qualquer tipo de intervenção estatal que resolva os problemas da população. As suas palavras não ficaram no século XX – ecoam pela intemporalidade.

Mas olhemos em concreto para Milei. É importante cimentar a ideia de que não estamos a falar meramente de alguém um pouco mais excêntrico do que o normal ou com uma conduta social mais insólita, como já se ouviu – falamos de alguém mentalmente instável, pois não há grau de excentricidade que justifique o uso de uma motosserra em comício como analogia para os cortes pretendidos, o admitir publicamente que ouve vozes ou que fala com Deus através do seu cão. Não só o grau de conduta e estado mental do agora presidente eleito são preocupantes, como as suas políticas económicas e sociais não ficam nada atrás em termos de bizarria. Para além da eliminação de ministérios cruciais para um qualquer país minimamente desenvolvido, como os da saúde e educação (coisa que, à data deste artigo, já fez), planeia encerrar o Banco Central da Argentina e terminar com o peso, isto é, perder a soberania económica do país para ficar dependente do dólar americano, moeda pesadamente forte para a economia argentina. É provável que as propostas mais radicais não passem, até porque a coligação que apoia Milei não possui maioria em nenhuma das câmaras representativas. Contudo, fica clara a terceira lição destas eleições: sabemos agora o que acontece quando juntamos a loucura com o ultra-capitalismo anárquico.

Javier Milei e Santiago Abascal

Javier Milei, Presidente eleito da Argentina, e Santiago Abascal, líder do partido de extrema-direita Espanhol VOX.

Fonte: Vox España, via WikimediaCommons

Igualmente preocupante foi o rejubilar de vários “liberais” portugueses pela eleição deste quase-fascista. É com muita consternação que observo que tal opinião não se restringiu a meia dúzia de “ilustres desconhecidos” das redes sociais: o ex-candidato presidencial da Iniciativa Liberal, Tiago Mayan Gonçalves, foi um dos mais expressivos na celebração da vitória de Milei. Daqui tiramos a quarta e última lição destas eleições: os nossos “liberais” estão bem mais próximos de um projecto anarco-capitalista e claramente desigualitário do que dos liberais clássicos. É, aliás, chocante como ainda podem continuar a intitular-se liberais depois de claros apoios a populistas, anarco-capitalistas e proto-fascistas. Os gigantes em cujos ombros dizem estar só podem estar a dar voltas no túmulo.

A música de Julie Covington para o musical “Evita”, sobre a vida de Eva Péron, é provavelmente a maior referência cultural que temos sobre esta antiga primeira-dama da Argentina. Ganhou projecção internacional graças a Madonna, numa versão marcadamente mais pop que não perdeu a chama inicial e, principalmente, o objecto da letra: as relações de poder e o possível desvirtuar do projecto prometido por “Evita” graças à sua subida aos meandros do poder. Se quisermos ser menos analíticos e mais simples na sua interpretação podemos somente dizer que Evita nos pede para não chorar porque a Argentina irá sobreviver. Acredito piamente que esta visão é a correcta. Chorar de pouco serve – bem mais importante é aprender com as lições destas eleições para evitar novas situações desesperantes.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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