Justiceiros do PIB per capita


Muitas séries tiveram como inspiração factos ou momentos da vida quotidiana. Numa em particular, parece estar a acontecer o movimento inverso: a série está a moldar a vida real. Refiro-me a “O Justiceiro”, em inglês, The Punisher. Talvez seja importante fazer uma nota prévia de que não vi a série na sua totalidade e apenas conheço traços gerais da sua história. Por isso, podem estar descansados que este artigo não irá conter spoilers. A sinopse da série é relativamente óbvia: um indivíduo torna-se um justiceiro, que faz justiça pelas próprias mãos, contra tudo o que considera ser imoral ou ilegal. Ora, surgiu, recentemente, uma classe de justiceiros que bebeu desta série inspiração para a sua actuação: refiro-me aos Justiceiros do PIB per capita. Quando é publicada uma notícia que indica que o crescimento de um país de leste é superior ao nosso, esta nova elite aglomera-se, difunde-a e grita pelo falhanço completo do país. Tal como o da série, os Justiceiros do PIB per capita tentam combater essa acção quase criminosa com todos os meios disponíveis. Todavia, também como o Justiceiro, que actua na zona cinzenta da lei (no melhor dos casos), muitas concepções importantes escapam à sua análise toldada pela cólera.

A primeira é que olham de forma unidimensional para um problema, algo que só pode ser designado de ridículo. Fazer uma análise multidimensional, holística e interligada é muitíssimo mais complexo, mas bem mais real e factual, coisa que parece não interessar aos justiceiros do PIB per capita, que preferem omitir factos que lhes destroem a narrativa. Como é perfeitamente óbvio, de nada serve que um só indicador económico suba se todos os outros indicadores sociais diminuem ou estagnam.

A segunda, que já tive oportunidade de explicar, é que ignoram que o PIB per capita é, per se, um mau indicador. Admito que possa servir para avaliar de forma rápida o desenvolvimento e a evolução de uma economia, mas não faz sentido que, numa análise que se quer séria e ponderada, seja utilizado sozinho. O PIB per capita, ainda que ajustado ao poder de compra, incorpora produções fictícias (daí ser melhor utilizar o PNB), omite várias produções (porque circunscreve de forma muito limitada o que é uma produção e o valor) e ignora as assimetrias existentes (porque faz uma média muito superficial).

A terceira é que, se vivemos numa união política, social e económica, a competição tem de ser controlada e não desmedida. Isto é, a competição deve existir (e, enquanto existirem entidades nacionais, é normal que ocorra), mas não pode ser o alfa e o ómega da comparação entre países. A competição deve vir depois da parceria e cooperação. Pode ser uma visão pueril, mas é a única compatível com uma Europa que se quer mais fraterna, próxima, democrática e igual. Por isso, mais do que espernear quando os outros países ultrapassam Portugal, interessa perceber como é que isso pode contribuir para o nosso próprio crescimento.

Importa referir que sou um dos primeiros a concordar com a crítica de que a economia do país está num estado lastimável, mas não chego a tal conclusão pela queda de um só indicador económico, nem pela ultrapassagem de outros países. Aliás, esta é uma característica típica dos justiceiros – defendem de forma tão absoluta a sua concepção de realidade que ignoram tudo o mais que influencia, positiva ou negativamente, o assunto em causa. Tal como um justiceiro, possuem uma visão única e míope, que se crê acima da de todos os outros. Concebem-se como os únicos defensores da verdade e da literacia. Ainda assim, se toda esta argumentação não for suficiente, vejamos alguns casos concretos que deitam por terra a força bruta dos justiceiros do PIB per capita.

Há pouco mais de um mês, uma notícia confirmou a ultrapassagem de Portugal pela Roménia, em PIB per capita. Naturalmente, os justiceiros entraram logo em acção. Contudo, apenas leram a manchete da notícia, porque esta apontava várias justificações para tal acontecimento, que pouco ou nada reflectem a condição portuguesa: “para a evolução deste indicador na Roménia, tem contribuído o maior crescimento económico, mas também a perda da população naquele país. Ao contrário de Portugal, a Roménia também mantém a autonomia cambial por não ter aderido ao euro". Acho que não preciso de explicar aos justiceiros as vantagens de manter a autonomia monetária e cambial, o decréscimo de alguma população, a proximidade aos centros económicos e produtivos europeus ou ainda uma maior literacia global. Mais recentemente, um outdoor espalhado pelo país pelos próprios justiceiros, causou algum celeuma nas redes sociais – dava conta de que a economia portuguesa, desde 2000, tinha caído vários lugares na escala do PIB per capita e que por isso deveríamos todos preparar-nos para o pior.

Outdoor do Mais Liberdade

Outdoor do Instituto +Liberdade

Fonte: +Liberdade, via Twitter

O gráfico, per se, é chocante e tem esse mesmo intuito – Portugal caiu 6 lugares na classificação. Seria de esperar que os países que nos ultrapassaram fornecessem melhores condições de vida à sua população – de que serve o crescimento económico se não para a melhoria das condições? Na realidade, não foi isso que aconteceu na maioria. Um dos países que ultrapassou Portugal em PIB per capita, como referido atrás, foi a Roménia. Neste momento, tem uma taxa de mortalidade infantil superior à portuguesa, esperança média de vida com qualidade inferior, desigualdade social superior, um índice de Gini superior (que demonstra maior desigualdade salarial) e um Índice de Desenvolvimento Humano francamente inferior. Posto isto, será preferível viver na Roménia, onde o PIB per capita é superior, ou em Portugal? Outro país que ultrapassou Portugal foi a Lituânia. Tem, também, uma esperança média de vida inferior, uma maior desigualdade de género aquando do acesso a lugares de poder e uma inflação que, neste momento, está perto dos 15%. Podemos ainda comparar-nos com a Hungria, outro país incrível em termos de PIB per capita, mas que não dá cartas no desenvolvimento humano (possui um índice inferior ao português), na qualidade da democracia (francamente debatível e alvo de denúncias pela Europa fora) e na protecção do ambiente (por exemplo, produção de energia de fontes renováveis muito inferior à nossa).

Nada disto serve para ignorar o PIB per capita. Serve, contudo, para mostrar que uma análise com um único indicador é estapafúrdia. Precisamos de avaliar múltiplos indicadores – da saúde, da educação, do ambiente, da economia – para poder ter uma visão holística sobre as sociedades que comparamos. Caso contrário, caímos no ridículo de exigir viver em sociedades autocráticas e manifestamente desiguais como o Catar, o Brunei ou o Kuwait, apenas porque têm um PIB per capita superior.

Quero, naturalmente, que Portugal se desenvolva economicamente e que deixe a sua sobredependência de actividades pouco produtivas e ancoradas em baixos salários, como o turismo. Mas, sobretudo, quero que esse crescimento se reflicta na melhoria das condições de vida da população. Pode dar-se o caso de o país crescer economicamente e de esse crescimento ficar retido no 1% mais rico. Estará tudo bem nessa altura? Os justiceiros do PIB per capita dirão que sim.

O autor não segue o novo acordo ortográfico


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