A geringonça não morreu – já é um cadáver
Em 1978, o irreverente grupo português de folk-rock “Banda do Casaco” lançou o álbum “Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos”. Este álbum, que reflectia sobre as condições precárias, a instabilidade da nação e a ingovernabilidade do país, continha uma música denominada “Geringonça”. Hoje, em 2021, a Geringonça já não existe mas a instabilidade e a ingovernabilidade sim.
A queda do muro entre a esquerda e o centro-esquerda, protagonizada por Jerónimo de Sousa, no rescaldo das eleições de 2015, marca o início da solução governativa posteriormente denominada de Geringonça. Este termo, criado com um sentido pejorativo, foi absorvido pelos membros que a compunham, como forma de dar vida à dicotomia do país: esquerda-direita. Tornou-se também uma das palavras mais comuns do léxico político e social, entrando em vários debates e discursos.
O país que encontramos desde a formação da Geringonça é muito diferente do actual. Vários avanços foram conseguidos, como o aumento significativo do salário mínimo, a queda abrupta do desemprego e o aumento do investimento em educação e saúde. É preciso ter em conta o clima de prosperidade económica mundial, taxas de juro baixíssimas e uma política monetária europeia que beneficiava a expansão orçamental e económica. Ainda assim, é notória a evolução desde 2015 até à queda da Geringonça em 2019. Não é engano meu, a Geringonça caiu em 2019.
A Geringonça está em mumificação desde 2019, quando as diversas forças à esquerda não se comprometeram com um acordo pós-eleitoral, como em 2015, obrigadas por Cavaco Silva.
É esse o momento da morte da Geringonça. No entanto, ao invés de aceitarem a sua morte, os outrora membros da Geringonça, decidiram insistir na sua vivacidade, tal como no filme de comédia “Fim-de-Semana com o Morto'', de 1989. Infelizmente para todos nós, ao contrário do filme, esta fachada durou 2 anos, em vez de 2 dias.
Engana-se quem crê que a pandemia foi o principal causador do óbito da Geringonça. A pandemia global apenas veio destapar o véu da sua notória morte. Sem acordos assinados que permitissem determinar o ónus da instabilidade, caso algum partido saltasse fora da solução, os parceiros estavam livres para as suas tácticas político-partidárias. Em plena crise, o PCP votou contra o Orçamento Rectificativo para 2020. 4 meses depois, foi a vez do BE mostrar que também tem um pé fora e um pé dentro do arco da governação, votando contra o Orçamento de Estado de 2021. Conforme escrevi anteriormente, estes problemas nem se tinham colocado se tivesse havido uma renovação do acordo assinado em 2015.
O Presidente da República também teve a sua quota parte de culpa no assassinato da Geringonça. Os partidos naturalmente não queriam amarras e por isso, de livre vontade, não assinariam nenhum acordo. No entanto, cabia ao Presidente exigir a sua assinatura. Este acordo teria sido fundamental à estabilidade da governação. Permitia também o planeamento a médio-longo prazo de reformas estruturais que são essenciais para o nosso país – coisa que um governo minoritário sem estabilidade parlamentar, que necessita acordar ponto a ponto o Orçamento, não é capaz de fazer.
Sem essa estabilidade e sem o planeamento a médio-longo prazo estamos condenados a navegar à vista. Enquanto não fizermos reformas estruturais não iremos sair da cepa torta nem potenciar o nosso crescimento. Dou um exemplo claro: O nosso tecido empresarial é esmagadoramente representado por micro e pequenas empresas – 97% – cuja falta de capacidade de inovação e de desenvolvimento se nota quando apenas representam 54% do emprego ou 38% do valor acrescentado aos produtos. Tal quadro piora quando pensamos que apenas um terço dos administradores possui um curso superior, dado fortemente relacionado com a produtividade, inovação e crescimento. Se não existirem políticas de fomento ao desenvolvimento e à investigação, as nossas pequenas empresas nunca se transformarão em médias e as nossas empresas médias nunca se transformarão em grandes empresas.
Um clima de prosperidade social e económica só poderá existir se houver uma maioria estável, suportada em acordos de princípios que nos façam dar um salto em frente. Garanto-vos que não seria com uma múmia que o iríamos fazer.
O autor não segue o novo acordo ortográfico