Sobre o Futuro da Europa
Nos últimos dias, resultado da ofensiva russa, a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia apresentaram pedidos oficiais de adesão à União Europeia. Ainda que queiram, por razões evidentes, um processo rápido de adesão, é de prever que essa entrada não se concretize tão cedo. A admissão à União Europeia
Na circunstância excecional em que o continente se encontra, concordo que seja necessário acelerar alguns processos, no sentido de reconhecer o mais rapidamente possível estes países como candidatos à adesão – o mesmo estatuto que têm Albânia, Macedónia do Norte, Montenegro, Sérvia e Turquia – e iniciar o longo processo de adaptação e integração necessário à compatibilização das suas políticas sociais e económicas com as da União Europeia. Porém, a partir desse prelúdio, devemos avançar com cautela. Os Critérios de Copenhaga são essenciais para que o projeto europeu se possa manter a longo prazo e para que continue a ter a legitimidade de lutar pelos valores que tenciona defender. A verificação do seu cumprimento deve ser tão criteriosa nos casos da Ucrânia, da Geórgia e da Moldávia como em qualquer outro país candidato e, para isso, não deve estar sujeita a pressões de caráter temporal, independentemente do contexto em que nos encontremos.
Além de perceber se estas três nações estão prontas para aderir à União Europeia, é ainda mais importante sabermos se a União Europeia está preparada para mais um alargamento. A criação do projeto europeu e a sua evolução até à União Europeia dos dias de hoje deu-se através da assinatura de tratados sucessivos que criaram teias legais, políticas e diplomáticas difíceis de navegar e resultaram no atual sistema, pouco transparente e de representação cada vez mais distante e indireta dos cidadãos. Antes de olharmos para fora, rumo à expansão, é essencial olharmos para dentro e pensarmos nas reformas que devemos introduzir a nível europeu e que podem contribuir para a simplificação destas teias e para a maior democratização das instituições europeias.
Foi com o intuito de delinear estas e outras reformas – e de auscultar os cidadãos no momento de as elaborar – que a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu anunciaram, em 2019, a Conferência sobre o Futuro da Europa. Adiada por imposição da pandemia, esta conferência, constituída por vários eventos, acabou por começar na segunda metade de 2021. Milhares de ideias foram sugeridas por cidadãos europeus através da plataforma digital da conferência, sob a forma de petições. Estas foram consolidadas em centenas de recomendações, que serão agora levadas ao último plenário da conferência, a iniciar-se entre os dias 11 e 12 de março, com o objetivo de decidir quais chegarão às instituições europeias. Entre estas recomendações, encontra-se uma que considero de especial importância: a de pôr fim à necessidade de conseguir votações unânimes para certas decisões no Conselho da União Europeia (um de três órgãos legislativos da UE; importa não confundir com o Conselho Europeu, de nome similar, não fosse a UE demasiado simples de compreender).
Atualmente, grandes decisões na União Europeia estão dependentes do consentimento unânime de todos os estados-membros: a revisão dos Tratados da UE, políticas de harmonização fiscal, algumas políticas ambientais ou sociais, a Política Externa e de Segurança Comum ou todos os Quadros Financeiros Plurianuais, por exemplo. É uma imposição que nos trouxe alguns dissabores, incluindo uns recentes:
- Desde 2016, muita tinta tem corrido sobre a destruição do Estado de Direito na Hungria e na Polónia e as respetivas ameaças aos valores europeus. A União Europeia ainda não sancionou qualquer um dos dois países, dado que o outro vetou sempre qualquer sanção;
- Em 2020, um grupo de 4 países, apelidados de “países frugais” (que representam apenas cerca de 9% da população da UE) colocou diversas dificuldades à aprovação do Quadro Financeiro Plurianual da UE para 2021-2027 e do pacote Next Generation EU;
- Também em 2020, o Chipre (cerca de 0,3% da população da UE) vetou, inicialmente, sanções aos responsáveis por manipular as eleições presidenciais na Bielorrússia, como chantagem, para tentar que a União Europeia sancionasse também a Turquia.
A tendência é clara: a atual necessidade de unanimidade para muitas decisões da União Europeia abre as portas a que representantes de uma minoria da população europeia contrariem a vontade da maioria – no caso mais extremo, é seriamente improvável mas teoricamente possível que Malta, com apenas 0,1% da população da UE trave, por exemplo, a atribuição de fundos europeus durante vários anos. Além disso, dado que essa unanimidade se tem de verificar a nível do Conselho da União Europeia e não de um órgão diretamente eleito, esses representantes são governantes no seu país e podem dar prioridade à defesa dos interesses dos seus governos, em vez dos interesses dos cidadãos que representam. Por fim, o problema é agravado porque este requisito de unanimidade se faz através do que é apelidado como “sistema de veto duplo”, em que, muitas vezes, estas políticas necessitam de unanimidade no Conselho da União Europeia e, de seguida, de serem ratificadas individualmente em cada estado-membro, permitindo que parlamentos nacionais, referendos ou tribunais constitucionais façam todo o processo voltar à “estaca zero”.
Um sistema que introduz a possibilidade de uma representação tão desequilibrada da população é chocante numa democracia moderna e o “veto duplo” continuará a trazer entraves à progressão do projeto europeu. Com a aprovação do Tratado de Lisboa, tentou aliviar-se o problema através, por exemplo, das “cláusulas passerelle”, mas estas soluções são ineficientes e de âmbito muito limitado. Uma verdadeira solução passaria pela substituição do atual sistema por maiorias qualificadas ou “supermaiorias”, que podiam ser definidas por uma percentagem mínima de estados-membros, da população representada ou até por ambas. Mas soluções deste género precisam de alterações aos tratados – que juntos formam o que mais próximo temos de uma “Constituição Europeia” – e essas alterações estão dependentes, claro, de unanimidade. É um problema complicado, que vem sido seriamente debatido no seio da União Europeia há, pelo menos, 20 anos, sem que isso tenha resultado em algum progresso. Infelizmente, também não se prevê que a recomendação da Conferência sobre o Futuro da Europa venha a dar frutos: a conferência tem sido criticada por não existirem quaisquer garantias acerca do impacto das recomendações, que não são vinculativas. Em suma, não temos solução à vista.
No entanto, o facto de não conseguirmos solucionar atualmente um problema complexo não significa permitirmos que este piore. E ele agrava-se a cada alargamento da União Europeia. O princípio de votações por unanimidade foi introduzido em 1957, com a fundação da CEE, então por apenas 6 países. Hoje, com 27 estados-membros da UE a trabalhar neste sistema de “veto duplo”, passamos de 12 para 54 pontos de possíveis vetos, numa união com uma diversidade de interesses muito maior e, portanto, maior dificuldade de consensos absolutos. Sou da opinião que a União Europeia se deve alargar e que nenhum país europeu que queira participar no projeto deve ficar de fora, à medida que o continente se une rumo ao futuro. Contudo, proceder a novos alargamentos antes de solucionarmos definitivamente este problema urgente é condenar esta união a ineficiência e inação.
Para agirmos no sentido da prosperidade e da defesa dos valores europeus, temos, primeiro, de lutar para manter a nossa capacidade de ação, através de uma Europa mais unida do que nunca. É este o primeiro passo para melhor defendermos a Ucrânia, a Geórgia e a Moldávia.