Repetiu-se como farsa
Hegel, filósofo alemão responsável pelo idealismo do século XIX, escreveu que “a História repete-se sempre pelo menos duas vezes”. Como quem conta um conto, acrescenta um ponto, Marx, numa análise histórica ao curso da revolução francesa, e no seguimento da proclamação do Segundo Império Francês por Napoleão III, adicionou à frase de Hegel “primeiro como tragédia, depois como farsa”. A interpretação mais óbvia é de que a História é composta de eventos cíclicos e que a sua repetição é feita, muitas vezes, de forma farseada — aconteceu no século XIX com o Segundo Império Francês, acontece agora com o fascismo.
Importa aclarar que o recrudescimento do fascismo não se cinge ao nosso país, ainda que este artigo parta do rescaldo das eleições em que a extrema-direita nacional obteve um crescimento vertiginoso. Aliás, tal como na moda, Portugal parece ter um desfasamento temporal considerável — em vários países da Europa, existem, há já largos anos, partidos de extrema-direita e, em alguns, como Itália, são o principal partido do governo.
Precisamos entender que a extrema-direita, e o fascismo em particular, não aparece no vácuo: brota de um sistema mercantil manifestamente desigualitário e subsiste à boleia da ausência de respostas do sistema democrático. O fascismo europeu proliferou como tragédia no rescaldo da primeira guerra mundial e das condições financeiras que levaram à grande depressão. Não é surpreendente que tenha sido o movimento mais popular no culminar de um período manifestamente desigualitário e de elevada concentração da riqueza, de imperialismo e consequente guerra por exploração mercantil.
Agora, diante dos nossos olhos, encontra-se a sua repetição, como Hegel disse. Só que desta vez somos confrontados com a versão farseada, como Marx previu. A explicação é muito complexa, multifactorial e extravasa largamente uma mera crónica. De forma simples, podemos considerar que o fascismo surgiu, inicialmente, pelo natural agudizar das contradições da ordem liberal do final do século XIX: subjugação, desigualdade, exploração de novos mercados e imperialismo. Desta vez, surge de forma empolada por um sistema politicamente construído, veiculado e financiado por uma micro-elite que defende tudo e o seu contrário menos numa coisa: a manutenção do seu estatuto de classe.
O farsismo, como bem Rui Tavares lhe chamou, aproveitou as condições da revolução conservadora e da construção política do neoliberalismo para se implantar e garantir a subsistência — foi a resposta que o sistema económico e financeiro encontrou para garantir a sua própria manutenção. Por isso é que é uma farsa: porque não é anti-sistema, é a excreção concentrada de tudo o que o sistema tem de errado. Porque não pretende mudar o sistema: pretende aprofundá-lo e agudizar as suas contradições. Porque não se importa e muitas vezes cria as falsas dicotomias que apresenta: apenas se interessa com a sua própria manutenção. Porque, no fundo, o farsismo surge com um único propósito — manter o capitalismo mercantil à custa de tudo, inclusive a democracia.
Todo o projecto é mentiroso, é enganador, é impostor — é farsa. Mas é errado considerar que todos os cidadãos que optaram por ela são anti-democráticos ou até fascistas. Eles existem, mas são sociologicamente uma minoria. Todos são coniventes e responsáveis pela consequência do poder acrescido do projecto, mas é errado acreditar que a sua lógica de voto é intrinsecamente a da anti-democracia. Na realidade, o farsismo aproveitou o descontentamento gerado pela falta de soluções do próprio sistema para se implantar — no caso particular, com o PS à cabeça. Aproveitou a consequência natural de décadas de despolitização da coisa pública. Da atomização crescente dos cidadãos. Da mercantilização de todos os aspectos da sua vida. Do choque multicultural causado pela globalização. Da crise da democracia representativa em todos os planos (local, nacional, europeu). Da manifesta degradação das condições de vida. Do salário que não chega ao fim do mês. No fundo, aproveitou o facto do próprio sistema não saber cuidar e empoderar cada um dos seus.
Marginalizar, excluir, embrutecer, dividir, alienar foi tudo o que o sistema mercantil neoliberal fez e tudo o que o farsismo continuará a fazer. Vamos aplicar a mesma receita para ter um resultado contrário? Devemos ser loucos.