Os europeus "À espera de Godot"


Em “À espera de Godot”, brilhante peça de Samuel Beckett, Estragon e Vladimir esperam incessantemente por uma 3ª figura, Godot. Após múltiplas peripécias, a peça termina sem Godot ter chegado. Na realidade, Estragon e Vladimir não fizeram muito para encontrar Godot, apenas esperaram por ele. Vamos actuar na justiça fiscal, com vista a uma maior integração e coesão, ou também vamos continuar à espera?

Os tratados europeus permitem a livre circulação de capital, sem restrições e sem qualquer nível de cooperação e transparência fiscal. Dada a sua natureza, abrem uma corrida à concorrência desleal e ao "dumping fiscal" (países declaradamente baixarem a sua taxa de IRC-Imposto sobre rendimentos Colectivos), aliciando empresas a sediarem-se nesse país. A empresa que decide mudar a sua sede para lá, poupa dinheiro em impostos, mesmo que a sua actividade seja maioritariamente noutro país. Assim, o país com menor taxa de IRC desvia impostos do país de proveniência da empresa. Situação em que todos ganham, certo? Errado. Ora, para apanhar o comboio fiscal , o país de origem também irá baixar o IRC. Os países na região, não querendo ficar para trás, sob pena de se tornarem menos competitivos, também baixarão os seus impostos. Estão formadas as condições para aquilo que a Economia Social designa por “corrida até ao fundo”, um verdadeiro movimento de dumping fiscal, onde só as grandes empresas ganham e todos os restantes intervenientes da sociedade perdem.

As diferenças entre os valores mínimos de IRC nos países da União Europeia são absurdas, dado que permitem, por exemplo, que uma empresa cuja principal actividade seja em França, esteja sediada na Holanda, no Luxemburgo ou na Irlanda e consiga, com isso, amealhar milhões de euros em impostos, enquanto os restantes contribuintes franceses (singulares e colectivos), suportam toda a estrutura social e económica, também em benefício das empresas cuja sede fiscal ficou noutro país. Um claro exemplo disso é de uma subsidiária da Microsoft, na Irlanda, que pagou 0% de impostos sobre a sua facturação, apesar de ter registado um lucro de 260 mil milhões, sem um único cêntimo de imposto pago. Este feito foi conseguido através da transferência da sede fiscal da Irlanda (onde a taxa de IRC é baixíssima e ronda os 12,5%) para as Bermudas, cuja taxa sobre os lucros é de 0%.

Torna-se crucial a implementação de um valor mínimo de IRC a nível europeu, por forma a evitar que multinacionais desloquem a sua sede para países com praticamente nenhuma tributação, não contribuindo para a sociedade de onde obtêm o lucro e onde desenvolvem a principal actividade. Esta fuga aos impostos reduz a capacidade comunitária para o combate à desigualdade, para uma transição ambiental e energética e para uma maior resiliência. Além disso, corrói qualquer projecto federalista, perpetuando desigualdades e inimizades entre os diferentes países da União.

O EU Tax Observatory, um observatório de estudos europeu sobre tributação e desigualdade, mostrou que uma taxa mínima de IRC de 21% a nível europeu permitiria arrecadar mais 100 mil milhões de euros por ano. Este valor representa mais de 65% do Orçamento da União Europeia para 2019 ou cerca de 40% do total da dívida pública portuguesa.

É imperativo que a concorrência entre países seja leal e transparente, que tenha como base a capacidade tecnológica, a inovação, o apoio e suporte do estado, a segurança e estabilidade do país, a escolaridade e o nível cultural, e não a taxa paga sobre o lucro.

É necessário que a uniformização europeia passe pelo esforço fiscal de todos os intervenientes da sociedade e, sobretudo, que permita uma melhoria das condições por toda a União, diminua as disparidades e desigualdades existentes e resulte numa maior coesão. Todos devem contribuir para o desenvolvimento da sociedade onde estão inseridos.

Neste sentido, o G7 reuniu-se para discutir a implementação de uma taxa mínima efectiva de IRC de 15%. A ideia foi, de seguida, debatida na cimeira do G20, com uma perspectiva global e não apenas europeia, e obteve a concordância de 131 países, responsáveis por mais de 90% do PIB mundial.

Apesar dos avanços dos últimos tempos, antecipam-se vários problemas, nomeadamente a oposição de paraísos fiscais de dimensão e importância considerável, a unanimidade obrigatória para mudança das regras económicas europeias e o sentimento (natural) de perda de autonomia de cada país. Muita água ainda vai correr debaixo da ponte, relativamente a este assunto.

No final da peça, Vladimir questiona Estragon sobre se deveriam ir embora. Estragon responde afirmativamente. Nenhum deles se move depois disso. Iremos, também, esperar imóveis pelo nosso Godot?

O autor não segue o novo acordo ortográfico.


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